Wednesday, January 16, 2008

Clichê

Ela era um clichê. Enquanto ouvia a Primavera de Vivaldi e encenava mentalmente um longo plano-sequência em que estalava os dedos, em frente ao laptop, e os mexia como um pianista e suas articulações. Que grande idéia precisa vir, que grande texto sairá dessas pontas de dedos com unhas escuras decadentemente descascadas. Esse seria o subtexto. Mas o texto seria outro.

“O que fazer quando se tem vontade mas não se tem idéia?”

Há muito mais idéias em mim do que mim nas minhas idéias, ela pensaria se deixasse espaço para trocas despreocupadas de pronomes oblíquos por pessoais. Fazia tempo que não usava esses termos. Talvez nem lembrasse mais deles. Talvez estivessem errados.

O clichê se manifesta de diversas formas mas o mais claro, para ela, é a falta de foco. Se fosse mais corajosa, tomaria uma dose de whiskie ainda vestindo a camisola de florzinha que ganhou da avó no Natal. Pegaria um cigarro de filtro amarelo e se sentiria uma prima distante de Byron. Uma prima tropical, que sonha com grandes gestos românticos, com a morte na juventude, com a fama póstuma. Mas já é tarde. Já é velha pra morrer cedo.

Vivaldi fica em segundo plano no momento em que os carros buzinam na rua e ela vai até a janela olhar o que acontece. Um engarrafamento. Um simples engarrafamento acontece na porta de seu prédio, a partir de uma moça de carro azul metálico que tenta fazer uma baliza e impede que os outros carros passem no sinal verde. O sinal fecha. Os carros buzinam, demonstram irritação os motoristas. Vivaldi aumenta o volume – não literalmente, é claro. O adágio do começo do parágrafo acaba e agora um andante passa a ser ouvido até pelas buzinas. Há todo um descontrole. Buzina em forma de corneta, parece.

Há corneta em Vivaldi? Violinos, há. Aos montes, as cordas acordam e gritam a resposta. Bobinha, nem sabe nada de música e fica tentando classificar o tom da buzina.

A camisola florida sai da janela, e acende um cigarro fictício que só existe no plano-sequência. Na realidade não entra cigarro no quarto. Odeia o cheiro de cigarro dentro de um lugar fechado. Acha chato pensar isso, muda de assunto porque o fluxo do pensamento é seu e nada pode interferir a sua vontade de ser interessante. O copo de whiskie já esvaziou, porque houve um corte e o plano-sequência acabou. Uma série de pequenos planos próximos, bem fechados, mostram suas unhas descascadas e a fumaça de cigarro em cima do teclado branco já muito sujo. Contra-baixo marca a montagem. Uma nota, um corte. Uma nota, um corte. Planos rápidos, clima montado. É facil criar clima através da montagem, ela sempre diz.

Tenta acompanhar o ritmo da música nas pontas dos dedos nas teclas com letras que imagina serem notas musicais. Palavras são notas, são música nos ouvidos dela, porque escrever é também ouvir. Ouve-se a sua própria voz lendo as palavras que inventa, ao mesmo tempo em que elas são inventadas. Como se a mente soprasse pros dedos as palavras, sussurrasse no pé do ouvido dos dedos, como se revelasse uma senha secreta, piano. Piano entra.

Há uma ruptura na peça. Ou no arquivo digital em que a peça está inserida e um silêncio toma conta do quarto.

Comove-se com o silêncio.

Em todos os níveis, sempre. O silêncio é uma pausa que a ensurdece porque nele cabe tudo e não cabe nada. Há sempre espaço faltando e espaço sobrando no silêncio. Há sempre uma promessa que está por vir. Há sempre uma decepção. O silêncio a acompanha no ritmo dos seus dedos. O silêncio é dela. Estala os dedos, sem pressa, ajeita a camisola, coça o olho direito que está ressecado por causa da fumaça do cigarro aceso dentro do quarto fechado. Há uma vocação para a depressão que a deixa irritada. Gosta de um drama, de uma cena. O silêncio privilegia o drama. Na comédia é preciso que haja a risada, senão fica sem saber se está agradando o público. O silêncio no drama é aplauso. É aprovação. Tosses, pigarros e ruídos de cadeiras velhas são a glória para o drama. Desconforto. Silêncio e desconforto. Não entende porque pensa agora em teatro. Foi parar no teatro a partir de quê, mesmo? Não compreende como chegou ali. Antes, quando pensava em silêncio, vinha a imagem de uma biblioteca imensa, cheia de estantes de madeira escura, coberta de edições encadernadas de belos livros antigos. Daqueles com letrinhas douradas na lombada. Aqueles que a gente chama de livro. Quando pensa em livro, na palavra livro, no objeto livro, pensa nessas lombadas. Há uma magnitude diferente. Livro é aquilo. Os romances que lê todos os dias são outra coisa, são desapegados da mítica dos livros, são meros produtos de perfumaria intelectual.

Tosse. Tosse três vezes. Desconforto ou excesso de fumo fictício?

O primeiro “tosse” era substantivo. O segundo, verbo. Deu pra entender? Quis deixar o duplo sentido. Será uma repetição do substantivo ou terá sido uma elipse de pessoa? Poderia dizer “ela tosse”. Mas prefere assim, porque a música a deixou confusa por uns instantes e a porta se abriu e deu pra ouvir o Jornal Hoje na televisão da sala. E a tosse parou, talvez por causa do susto, como um soluço.

“É o meu primeiro romance” – a personagem falou. E foi lindo, porque é ao mesmo tempo o primeiro romance que ela escreveu, uma vez que o começou quando ainda era uma estudante de enfermagem na guerra, mas também porque foi a primeira história que construiu, a partir de uma observação equivocada sobre fatos que ocorreram num verão quando tinha onze anos. Criar uma história aos onze anos e a publicar aos setenta e sete deve ser um alívio e um horror. Se ainda fantasiasse com o plano-seqüência, não teria deixado a trilha sonora mudar como agora. E se realmente vivesse um clichê interminável, ouviria uma velha vitrola e o disco arranharia e voltaria ao adágio do momento em que o carro buzinou e ela levantou com a camisola florida.

Mas a realidade é cruel. Já acabou o Outono de Vivaldi. E a próxima faixa, a que toca agora, ao mesmo tempo em que ela ouve num volume muito baixinho as palavras sussurradas na ponta dos dedos, é Someone to Watch Over Me. Quase não as ouve mais, só parte delas, faz um grande esforço pra ouvir mas a mente está rouca, cansada, emudecida.

Silêncio. Tosse.

Friday, January 11, 2008

Resolução

Nota para mim mesma: em 2008, evitar ser acusada por pseudo-criações. Evitar receber emails que envolvam as palavras "produziu essa ficção" - quando não há ficção, só vida real.

Evitar ficções, confusões e relações desnecessárias.

Só as necessárias serão aceitas.

Wednesday, January 02, 2008

Não-diário roubado

1 de novembro

a sala de espera
me ensina
a doce loucura
da espera ativa
na luz encantadora
dos olhos passados.

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dance, magritte, dance
que eu olho com os grandes
que tenho, curiosos,
lembro de você na parede
com a luz novaiorquina
tão rica de lembranças
e suspiros.
agora é aqui,
tua cópia é original
pra mim.



30 de dezembro

O não-diário quase que caiu em desuso
na cidade cinza.
Não há entradas,
só saídas.

A maior saída é ela.

O não-diário retroativo

Pode-se escrever diário
Apenas de memória
Com a lembrança dos dias
Em silêncio?

Se sim:

19 de dezembro

suas palavras de ontem
se fazem presentes e reais
um presente
de Natal
sem fita
com laço.

20 de dezembro

Rumo a um desconhecido
estar em mim.
Doce novidade,
cheia de medos
e vozes efêmeras.

25 de dezembro

a saudade comprova a certeza do que eu quero

30 de dezembro

O ano se despede de mim
com um sorriso sacana
“Pensou que sabia tudo, é?”
Não sei de nada, 2007.
Avisa pro seu amigo 2008
que esse ritmo do fim de ano
foi ótimo
e que surpresas são bem-vindas desde janeiro.
Não deixe pra dezembro, 2008,
por favor.

Obrigada,
L.